Relato Pessoal: Flávia Gemaque

Flávia Gemaque

Flávia Gemaque

Eu era a criança vista como excêntrica, com gostos e aspirações altamente atípicas. Aquela que decifrava todos os gestos e olhares, a que aprendeu a ler sozinha aos 4 anos.
Minha impaciência e inconformismo eram extremos, eu não conseguia aceitar o fato de ninguém mais enxergar o mundo como eu enxergava, de ninguém ver as cores das letras, números, dias da semana, nomes próprios e sons.
Aos 8 anos de idade, minha professora me identificou como superdotada: Reuniu a equipe escolar, depois foi à minha casa, sempre muito curiosa, ouvi toda a conversa atrás da porta. Ela disse que eu poderia ter uma vida de dor, por nunca me encaixar, por nunca deixar de buscar respostas, por não me aquietar… Eu argumentava tudo e convencia quase todos, era vista como tímida, calada, no entanto rebelde e explosiva e geniosa.
Adulta e com um filho autista de nível 2, tornei-me paciente da neurologista do meu filho, a qual um dia me disse: “Apesar de muito hiperativo, o mapeamento cerebral dele não apresenta nenhuma alteração, já o seu apresenta muitos padrões tensionais… tentando ser o mais didática possível, não há nada patológico, eu posso interpretar que sua mente não pára e, depois de meses te acompanhando, eu gostaria muito que você entrasse em um programa de pesquisas em comportamento humano, para contribuir com gerações futuras”. Depois dessas palavras, eu procurei a professora que me identificou aos 8 anos e ela disse: “Você marcou minha vida, você me deu muito trabalho. Eu havia acabado de iniciar no magistério e não sabia muito o que fazer… eu levava uma atividade pra turma, pra você eu precisava levar umas cinco, você tinha respostas e argumentos pra tudo”.
Há os que romantizam muito a superdotação. Posso afirmar que sofri por ser diferente, sofri por enxergar além, por minha enorme e desmedida intensidade emocional, por ter plena consciência de que a condição não se resume em inteligência acima da média, mas engloba uma série de fatores tão enormemente significativos que podem levar ao prestígio, mas também a uma dor intrínseca e anônima, que pode nos afastar de ideais, objetivos, nos fazer trilhar um caminho solitário e nos apresentar um cotidiano desorganizado e até mesmo, caótico.
Durante toda a minha vida escolar aprendi sem fazer esforços, observava a explicação dos professores e aquilo já era suficiente. Na graduação, o nível e a exigência aumentaram muito, então eu percebi que durante a vida toda fiz tudo errado, eu nunca havia aprendido a me esforçar. Paradoxalmente a isso, eu não gostava das novas aulas mais “difíceis”, ainda assim, eu esperava muito mais delas e acabava abandonando algumas disciplinas pela metade. Essa realidade chocante me gerou angústia, ansiedade e frustração, mas o quadro permanecia o mesmo, só mais tarde, já no Mestrado, aprendi a organizar os estudos, na verdade, aprendi de fato a estudar.
Relutei muito em escrever aqui, por medo de parecer esnobe, pois sempre fui precoce e acima da média, mas autoconfiança nunca foi algo que eu dominasse, segurança só conheci quando me tornei mãe, pois com ele eu não me permitia errar, ele não podia me ver tão falha e inconstante.

Flávia Gemaque
Amapaense.
Professora de Biologia, ex-professora de Francês, Mestre em saúde, dançarina e escritora.

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Published on December 01, 2024 08:48
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