A cidade da fronteira
É o quarto mais simples até agora. Sem cama de casal, sem ar condicionado. E o mais barato, também. A vila se parece com qualquer aglomeração que se forme a partir de uma estrada, de uma conjuntura geográfica. Pela primeira vez desde que cheguei à Tailândia sou o único ocidental. O trajeto que me conduz a Mae Sot leva cinco horas. Ao nos aproximarmos, o ônibus começa a descer em meio a uma floresta de árvores esquálidas e solo queimado. O cheiro de incêndio invade o ambiente climatizado. Passamos por um caminhão que acaba de tombar, e voamos debaixo de barrancos muito frágeis. Os rios estão secos sob a aridez rosácea das colinas. Somos obrigados a parar em um controle de Imigração. É o primeiro de muitos.
A minha amiga alemã me disse que para entrar no campo talvez eu precise subornar alguém. Falou das milícias dos refugiados Karen, das milhares de minas que aguardam na margem do rio que divide Myanmar e Tailândia como sementes negras ansiosas para brotar.
A pousada é silenciosa. O proprietário me pergunta se sou muçulmano. Com um aceno reiterado, indica um bom restaurante. Confirmo se o wifi é bom. É bom. O quarto vai ficando triste à medida que escurece. Com um mapa fotocopiado que o dono da pousada me entrega, saio para caminhar. A maioria dos comércios já correu as portas metálicas. A cada três ou quatro quarteirões um alto-falante ecoa uma canção pop ou uma música de teor ufanista. Uso chinelos e não consigo caminhar muito. Meu pé ainda está um pouco inchado. A cidade é deserta, aparte a sensação de preenchimento que automóveis grandes, bicicletas e scooters provocam. Já vejo alguns farangs, provavelmente voluntários de ONGs ou gente que irá até a fronteira para renovar os seus vistos de turista. Pelo mapa, um escritório das Nações Unidas fica a algumas quadras ao sul. Adentro um mercado noturno um tanto decadente, barracões de zinco iluminados por fosforescentes brancas e lonas vermelhas da Coca-Cola forrando mesas e cobrindo paredes mofadas. Em duas mesas dispersas entre as motos estacionadas, mais grupos de farangs. Provavelmente o lugar onde têm cardápios em inglês. Sento-me de costas e peço um frango ao curry vermelho, arroz de jasmim e uma garrafa de Chang. Ao meu lado, peixes em ganchos sob a luz hospitalar atrás de uma vitrine conferem um ar de necrotério ao lugar.
Por que me incomodam tanto estes gringos? São tão inteiros. Falam tanto, e sempre com tamanha cumplicidade. Constato que não posso falar deles. Não tenho a menor isenção. Sei que vou encontrar em Mae Sot uns norte-americanos que fazem voluntariado para preencher o currículo, pelo heroísmo que tanto lhes caracteriza, porque o mundo fora dos u.s.a. é uma circunferência de parques temáticos, porque é tão lindo posar com um sorriso caridoso enquanto se é abraçado por uma legião de crianças afetivamente famintas. Que belas histórias esses gringos não contarão em casa.
No dia seguinte, alugo uma bicicleta e vou até o café Borderlines. Vejo a exposição dos imigrantes, como um prato tradicional de Myanmar que poderia passar por um prato tradicional tailandês. Ao meu lado, um grupo de chineses neutraliza a tranquilidade do jardim. Na outra mesa, uma inglesa conversa por Skype com uma amiga que está na Austrália. Continuo rodando para descobrir as tais ongs, e não encontro nada. Volto para a pousada para aprofundar a pesquisa. Deixo uma mensagem para uma ONG situada em Myanmar. Em quinze minutos o secretário da instituição me liga. Desculpo-me pelo inglês falho, que se acentua ao telefone. Prometo enviar as perguntas por e-mail. Ele não parece nada incomodado. Faço as pesquisas sobre o sumiço do avião da Malasya Airlines, e já faminto, vou atrás de um restaurante birmanês anunciado pelo guia de viagens. Logo atesto que o lugar não existe mais, e acabo retornando ao mesmo mercado noturno. Peço um frango com castanhas e arroz, sem cerveja desta vez. Cinco minutos depois, trazem-me um prato onde não distingo os pedaços fritos entre os legumes. Peles de galinha como torresmos em um óleo rançoso. É quando percebo que estou entre casebres de zinco, que do outro lado das barracas de comida existe uma fileira de minúsculas habitações com as portas entreabertas. Do lado de dentro, alguma iluminação amarela, e gente conversando, famílias inteiras à sombra, rindo e comendo. Cenas familiares, familiares porque me fazem recordar Os Comedores de batatas, só que ao invés de batata comem arroz, e não há mesa, não há lamparina, mas uma luz econômica pendurada a um fio em algum canto entre roupas empilhadas, panelas sujas e um calendário com a foto do rei.
Crianças brincam entre as motos. A contragosto, três vira-latas perseguem uma moto que atravessa a rua ao fundo.


