Partida, Jogo

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Continuo perdido, mas pelo menos estou lendo Beckett. “Que horas são?” “A hora de sempre.” “Algo segue o seu curso.” Terminei a peça e saí do apartamento para mais uma aula de lindy hop, embora a vontade fosse de ficar escrevendo, ainda que eu não conseguisse escrever e estivesse me torturando com isso. Já na rua, sem caderno e com pressa para encontrar uma amiga, belas ideias (ou frases) se sucediam e perdiam a chance de uma leitura por terceiros, como quando esqueço a câmera e algo novo acontece. Ideias que me alimentavam – literalmente me alimentavam e me consumiam – o entusiasmo da abertura de um fiction novel, de um entusiasmo de juventude esquecido, ou apenas nostalgia. O retorno. Não tinha fome mas parei num lugar para comer, pedi o pad thai, pensando em como seria isso aqui se eu fosse outro, se eu fosse um homem sem palavras – como de fato sou – um homem que pensasse em contabilidades ou partidas de futebol, ou apenas em bundas e outras conquistas, mas isso era apenas o mantra do pensamento, de ainda querer caminhar apesar do encolhimento gradual de meu corpo. Avançar para resistir à morte do corpo. Sujeitar-me a acidentes. Ainda estava chateado com o sumiço das minhas únicas meias bonitas, que não voltaram da lavanderia; já desconfiava de tanta gentileza dos nativos. No mesmo dia encontrara os pijamas que esqueci pendurados no banheiro dentro de um lixo. Um lixo. Cheguei aqui abarrotado de ambições e elas foram sendo substituídas pelo atestado de uma latência, de uma morosidade que aprendi a acolher. A morosidade da sem-razão e do sem-projeto, algo bem budista. Tudo está e não está. Está na hora de abandonar algo.  Estou indo embora de Bangkok – já – porque preciso escapar do ruído e da fumaça de que estava farto antes de chegar. Não quero sair para dançar, mas eu gosto de dançar e eu preciso dançar para me libertar dos pensamentos. Vou pegar um trem para Chiang Mai e não consigo escrever uma palavra deste livro, deste projeto, destas pesquisas. Porque não quero nada disso, só quero estar aqui, obrigando-me a dançar, a conversar para não estar só, porque a história só continua no encontro. A pesquisa é essa. A pesquisa se dá porque sou incansável e estou sempre cansado. A pesquisa continua no descanso. Não os livros que eu trouxe de casa.  O meu corpo, sujeito a esta entrega, à errância e à dúvida. Só literatura, por favor, queria voltar para a literatura, queria que um sinal vermelho começasse a soar e me ensurdecesse a cada vez que eu tivesse alguma bela ideia de jerico de provar para dilacerantes outros internos (e externos, mas pra esses o remédio é outro, é o mesmo) que posso ser qualquer coisa. Calma. Encontro minha amiga na saída do metrô, que me apresenta uma outra amiga, e juntos vamos ao clube. Danço, escrutino os risos ansiosos e rijos no encontro dos corpos, ou os ombros tranquilos e dinâmicos. Aprendo o ritmo básico, ensaio com diferentes corpos. Arrisco fundir uns passos, perco o ritmo, volto ao passo básico. Proponho um novo passo, e transitamos para um segundo movimento. Depois, um terceiro. Depois reunimos todos em sequência, e os passos se intercalam naturalmente. Paro, achando que basta, mas volto para a pista. Me convidam para voltar ou eu me entusiasmo e volto por conta própria. Converso muito, já somos três conversando, depois mais dois ou três. Algumas conversas prosseguem, outras estacam. Risos ainda nervosos. À saída, todos já estão um pouco mais à vontade, prontos para começar. O último degrau da escada é mais alto que os outros, o passo em falso, o ritmo cansado se desconcerta, e torço o pé esquerdo. A dor é imensa. Eu conheço esta queda, sempre um pouco maior. Eu caio, sempre. Sempre algo assim. Só que pior. Trazem gelo, finjo que não é nada, que não se trata de um itinerário conhecido em minha geografia orgânica. Com o saco de gelo vou caminhando com as meninas até o metrô. Um acidente, uma interdição. O corpo que precisa avançar para não morrer. O processo inflamatório já segue o seu curso. O último degrau da escada. Tudo estava tão bem, mas há uma ferida que quer sempre me lembrar. A alergia, a pneumonia, a inflamação, o estalo. O corpo encolhendo, as ideias sem o caderno que as capture. Na peça de Beckett, existem quatro personagens. Dois estão confinados em latões. Um não pode se sentar, outro não pode se levantar. Antes das luzes se acenderem, os atores partilham os votos de boa sorte. Está tudo bem. Não há como evitar. Algo segue seu curso. A pesquisa compreende o algo, o seguir, o curso.


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Published on February 12, 2014 03:17
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