Um casamento
Ela é tailandesa, tem um rosto delicado, olhos amendoados e está diante de mim na mesa do café. Articula um inglês impecável, e preserva algo de um recato quase arrogante, acusando esta confusão entre o cosmopolitismo e a ostentação, típica dos jovens ricos dos países pobres. Eu pedi uns pretzels e não consigo comer. Mastigar parece uma brutalidade. Destoando da reserva com que me trata, passa a me ofertar encontros. Convida-me a acompanhá-la a um casamento no dia seguinte. A alta elite tailandesa estará presente. Trinta damas de honra, toda a pompa. Devo alugar um terno. Busca endereços na internet e anota um deles em meu caderno: “Mostre isto ao taxista, ele saberá onde fica.” Diz que estará ocupada na semana seguinte, mas que em duas semanas poderá me levar a vários lugares. Podemos viajar, ela diz. Vamos viajar. Quer me passar uma lista de filmes. Está disposta a suspender temporariamente o seu trabalho para me revelar tudo o que puder de sua cultura e dos seus costumes. Quer me contar do budismo theravada, deseja apresentar o seu irmão, que se ordenou monge no ano passado. Fala do ano que viveu nos Estados Unidos, da faculdade em Londres, de seus trinta e um anos, do negócio familiar que organiza de importação de brinquedos da China, de onde descendem. Eu não sei como agradecer, e ela não pede isso. A troca que combinamos foi de aulas de português por estas, de cultura. Menciono o livro que estou escrevendo, dos artigos que tenho em mente. Digo que sempre fui autodidata, que as coisas que busco não cabem numa área de conhecimento. Ela se anima quando falo nisso. É guia de viagens e está debutando. Acabou de abrir uma agência. Bangkok é o ponto de chegada e de partida para todos os países do sudeste asiático. Digo que irei para Laos e Camboja em breve, ela contesta que devo ficar mais tempo, que não devo ter pressa. Menciono a temporada de chuvas, que deve ser difícil viajar pelo país nesta época, que penso em ir para o norte. Ela discorda com veemência, diz que para o meu projeto preciso levar o tempo que for preciso. Em algum momento, sinto que preciso comentar algo das aulas de português, que me empenharei muito em ensinar-lhe, e ela comenta que sempre achou a língua portuguesa dos brasileiros muito sexy. Que acha muito sexy a palavra “porta”, e eu não contenho o riso, porque ela fala “porta” com sotaque caipira. Genial, so cute. Peço desculpas. “O Brasil será a China em vinte anos”, ela diz. Mas não parece muito interessada nas aulas de português. “Isso não importa tanto.Não precisamos nos preocupar com uma estrutura rígida nas aulas. Iremos conviver muito, e eu acabarei aprendendo bastante. Alugue o terno. Esteja bem bonito, talvez você consiga descolar uma garota.”
É sexta-feira, e saio de lá achando que tudo está caminhando perfeitamente. Tinha passado a semana sozinho, o que foi ótimo, mas com o fim de semana pelas frente as coisas mudavam. E descolar um casamento no meu primeiro sábado não era nada mal. Cinco dias depois da minha chegada. Alugar um terno em Bangkok. Devia desconfiar de algo? Confiar é uma projeção, uma escolha: arriscar-se em troca de mais confiança. Entregar e criar expectativas difusas. Esperar o inesperado, baixar a guarda. Viagem.
Acordei tarde no dia do casamento. Havia tomado um par de cervejas na noite anterior, e o calor fez o resto. Mas a loja de aluguel de ternos fechava às cinco, e o casamento era às 18h30 e não havia com o que se preocupar. O aluguel sairia por mil bahts, uns oitenta e poucos reais. O depósito mais mil. Iria incluir no conjunto uma camisa e um par de sapatos, e por isso levava três mil. Parei um moto-taxi e apontei ao motoqueiro a caligrafia de Qy com o endereço onde deveria ir. O homem assentiu. Pediu 200 bahts pela viagem. Me entregou um capacete. Montei na garupa e fomos.
Atravessamos a cidade inteira. Ao menos era o que parecia. Pareceu uma loucura, apanhar uma moto numa cidade de trânsito mais caótico, campeã de acidentes e atropelamentos. Em São Paulo, não pegaria uma marginal pinheiros daquela nem que me pagassem. Por que ali, num país desconhecido e sem seguro médico eu me arriscava daquele jeito? Mas eu sentia confiança. Confiança é um lance perigoso. Chegamos na loja, e comecei a provar de tudo. A moça queria me vestir uns trajes bizarros. O gosto deles. Algo o mais sóbrio possível. Falei onde seria o casamento, e eles comentaram “casamento muito caro”. O terno era mil. O depósito dois mil. mais sapatos e camisa, tudo ficava por três mil e quinhentos. Eu tinha três mil. Não aceitavam cartão. Eu estava numa ruazinha no meio de nada, longe de metrô, de skyline, de qualquer universo minimamente conhecido. Passara das três, e eu perderia o casamento.
Não podia de tanta frustração. Escrevi um sms para Qy, ela respondeu: “Acho que imaginava que você não iria mesmo, não sei porquê. Mas de algum modo eu já sabia. Mas tudo bem. É uma pena. Mas tudo bem.” Respondi dizendo que eu não sabia. Que estava muito frustrado. Que havia trazido mais do que o dinheiro que comentaram ao telefone. O fato é que eu ouvira errado, e fora imprudente, achando que estava sendo prudente. Ela me ligou cinco minutos depois, dizendo que não havia ficado chateada, e que eu não me exasperasse.
Agora que já tinha cruzado a cidade de moto, peguei um tuk-tuk e fui para khao san road, o gueto dos turistas da cidade. Rodei entre as lojas de camisetas e as barraquinhas de pad thai, noodle soup e escorpiões pretos fritos e besouros transparentes. Sentei em um lugar qualquer e pedi uma cerveja. “Não podemos vender, senhor. Amanhã é dia de eleição.” Olho para os lados, e está todo mundo na coca-cola e no resfresco. Não era o meu dia. Continuei andando, afastei-me da agitação e encontrei adiante um inferninho disco. A coisa estava animada lá dentro, e é claro que serviam bebidas. As primeiras três long necks desceram rapidamente, e já estava dançando. Mas não queria ficar ali. Saí, e três quarteirões adiante, em um bar de rua em um beco também servia-se de tudo. Um italiano que parecia o enfermeiro de Hable con ella puxou papo. Perguntei o que fazia, e ele comentou que era farmacêutico em um hospital. Logo veio um casal, um holandês e uma argentina. Pedi a quinta garrafa, e a sexta. Duas suecas de tatuagens e piercings tomavam um uísque caseiro muito escuro. Comecei a conversar com a argentina e me senti em casa. Falei do casamento, contei a peripécia toda. No dia seguinte, escrevi para Qy, perguntando como havia sido. Respondeu com uma lista de filmes de luta estilo bruce lee, e sagas de grandes reis, para que eu fosse me inteirando dos aspectos da “taicidade” antes de nos encontrarmos.


