Fronteiras
“O senhor não vai poder viajar.”, foi o que disse o funcionário do guichê da Turkish Airlines quando me apresentei.
“O quê?”
“Sinto, senhor, mas a migração tailandesa não permite que se entre no país sem uma passagem de saída, dentro do prazo inscrito no visto de turista, que é de três meses.”
“Mas eu vou sair por terra. De lá parto pro Camboja, Laos…”
“Não importa. Não poderei autorizar sua viagem, a não ser que compre uma passagem de avião para algum lugar. Pode ser a mais barata. Vá na loja da Turkish. O senhor tem até o dia dezesseis de maio para sair do país”
Faltavam três horas para o voo. Eu jamais havia comprado uma passagem em um aeroporto. Só vira isso em filme mas não entendia bem como, se havia tão poucos guichês de companhias aéreas em Guarulhos. Descobri que atrás dos balcões de check-in escondiam-se longos corredores repletos de portas fechadas, como num bloco de salas dos professores na USP. Uma ou outra estava aberta, a da Turkish era uma delas.
“Quero uma passagem pro Camboja.” Qual era mesmo a capital do Camboja? Não dormia há duas noites, e eram duas da manhã. Meus amigos estavam fazendo rolezinho no aeroporto, e eu ali em pânico.
“Camboja? Não temos passagem direta pro Camboja. É tudo via Istambul.”
“E quanto custa uma passagem de Bangkok pra Istambul?”, o cartão de crédito na mão, e já bem preocupado com as minhas reservas.
“Estamos com a promoção. R$2.347,92, senhor.”
Não quero ir pra Istambul. O que vou fazer em Istambul três meses depois de Bangkok? Dali, corri ao lado do meu amigo Renato (que não estava subindo nas balanças ou fazendo coreografias com todas as crianças do mundo) até o balcão de informações. “Moço, quais as lojas abertas a esta hora e que ofereçam passagens no continente asiático você tem aí?” Khorean Airlines, Ethiopian, Singapore, Macau Express, todas fechadas. De corredor em corredor, as únicas almas presentes eram os jovens cansados da Gol, que pareciam os willy wonkas de Guarulhos. As lojas supostamente estariam abertas, mas ninguém comprava passagens a esta hora, e fechavam as portas.
“Uma lan.”, sugeriu o Renato.
E foi assim que, duas horas antes do voo, comprei uma passagem para Tóquio dentro de uma lan-house do aeroporto, marcada para o dia dez de maio. O bilhete só de ida saía 500 contos. Na hora de efetivar a compra, acresciam mais 400 contos de taxas. Era o jeito. Para o Camboja era o mesmo preço.
Foi apenas no ar pressurizado do voo, enquanto o avião sobrevoava os desertos sanguíneos do Saara, e eu já não sabia se era dia ou noite, porque as janelas ficavam fechadas e confundiam de propósito o café, almoço ou jantar, e meu relógio interno já desregulava por conta dos sonos interrompidos pelas turbulências, que me perguntei se a passagem de ida e volta não teria saído pelo mesmo preço. E apenas na conexão em Istambul que, despertado de um cochilo nos assentos diante do portão de embarque, percebi que 10 de maio caía depois do prazo de turista de três meses. O atendente do guichê se equivocara e eu, cansado e ansioso como estava, não tinha me tocado. A passagem seria inútil para o caso de tretarem comigo.
De algum modo, aquilo não me incomodou tanto. Eu havia acabado de pousar em Istambul. Tinha me assombrado com a vista noturna da cidade, de como as luzinhas do alto sugeriam uma outra configuração urbana. E ao desembarcar na zona de conexão, às 22h da noite do horário local, atinei para o fato de que Istambul era um dos umbrais que ligavam o Ocidente e o Oriente, que eu estava oficialmente entrando em um mundo que reunia todos os mundos. Nos corredores de mármore entre lojas iluminadas de Duty Free, casas de doces turcos e restaurantes visivelmente caros, estava caminhando em meio a uma variedade de credos e tonalidades. Mulheres com Niqabs, apenas os olhos expostos, suecas com as pernas finas à mostra, grupos de adolescentes japoneses, barbas talmúdicas, monges tibetanos e trajes marroquinos multicor. Agora entendia onde se inspiraram os roteiristas de Star Wars quando conceberam as cenas da confederação, com a diferença de que aquilo não era uma festa à fantasia. Cada cor era uma crença, cada traço um hábito. Noções de beleza, de cordialidade distintos e evidentes num bigode, na timidez das crianças, nos sapatos e sandálias.
O segundo trajeto passou rápido, atravessando céus do Irã e do Paquistão, da India e de Bangladesh. A imagem da Tailândia na tela de informes de voo brotou como que saída do meu computador, de tanto que explorara o mapa com os olhos. Vinte e três horas depois, estava no outro hemisfério, além da zona de influência e da cultura brasileiras, pisando na Ásia pela primeiríssima vez. Não havia o que temer.
O policial verificou o passaporte e carimbou-o sem nenhuma pergunta.


