Imemorável
Ela tem o tipo de cara que é difícil recordar, quanto mais descrever. Apenas sei dizer que tem uns olhos grandes e profundos, daqueles que te perfuram até à alma. Se são azuis ou verdes, não consigo esclarecer. Esperem, ou será que estão mais próximos do castanho? O cabelo anda entre o dourado, penso. O tom de pele é claro, disso tenho a certeza! Mas, voltando ao cabelo, talvez seja arruivado. Arre! Estão a ver a minha frustração. Querer invocar o rosto daquela em que penso todos os dias, várias vezes, e não ser capaz de o fazer com clareza. No entanto, assim que nos encontramos, por norma na pastelaria preferida dela, embora não toque em nenhum dos bolos, delicia-se com o aroma que enche o local; quando a vejo, reconheço-a de imediato, com aquele “Ah! É ela.”.
Em relação à forma do seu corpo, nem longe, nem estando mesmo à sua frente, consigo perceber se é magra ou se possui aquela camada saudável sobre o corpo, que torna agradável o toque. Reconheço que não é gorda, definitivamente. Agora, ora me dá a impressão de ser muito magra, ora parece-me mais cheiinha. Talvez dependa da perspectiva… O que não deixa de ser estranho. Apetece-me pedir para que se dispa e permaneça de pé, enquanto eu a observo a uma certa distância, de vários ângulos. E não estou aqui a expressar nenhuma inclinação para o voyeurismo, atenção! É puro fascínio e interesse em descodificar este misterioso véu que a encobre, muito embora ela me atraia fisicamente, não é essa a questão. Como posso eu iniciar um relacionamento com alguém que nem consigo descrever? E se, um dia, ela desaparece e seja necessário descrevê-la à polícia, tipo aqueles depoimentos que se vêem nos filmes? Digo-lhes o quê, que é bonita e de sorriso carismático? Bonita, embora não do género que faz parar o trânsito? Que a sua conversa gira sempre em torno da complexidade emocional do ser humano? Não estou a ver como isso possa ser de grande ajuda. Sempre lhes posso entregar uma fotografia, é verdade. Pergunto-me se lhes acontecerá o mesmo que eu: reconhecem-na ao fitá-la, mas a imagem torna-se confusa no instante em que desviam o olhar.
Às vezes questiono-me se não me apaixonei por uma imagem irreal, um fantasma criado pela minha mente a fim de tornar os anos solitários mais tolerantes. Essa ideia atemoriza-me, mas não consigo pô-la totalmente de parte. Passo despercebido; nem o meu aspecto, nem as minhas conversas contém qualquer profundidade ou interesse. Para ser sincero, ela fala mais do que eu. Deixo-me simplesmente arrebatar pela sua mente demasiado cheia e rápida para a fala, atropelando-se ou deixando uma frase a meio. Ela não parece importar-se, rindo e sorrindo, inclinando a cabeça quando eu, timidamente, digo qualquer coisa. De facto, se não for produto da minha mente, qual será o seu interesse em encontrar-se comigo? Porquê perder o seu tempo?
O seu toque parece-me o de uma pessoa real. Será que a imaginação pode ser forte o suficiente para criar tão intenso estímulo em mim? Beijei-a, por incrível que pareça. Não faço ideia de onde fui buscar tamanha coragem, já que continuo a achar que sou uma mera sombra em relação a si. Ela deixou-se levar, suave, tímida. Os lábios quentes afastando o frio lá de fora. Eram doces. Fui embora de repente, não sei bem o que se passou, não me lembro do tempo a seguir àquele beijo. Parece que fiquei preso àquele momento, encantado ou enfeitiçado, não sei. Contudo, continuámo-nos a ver, e a trocar beijos carinhosos e apaixonados. Às vezes, sabia-me a chocolate, embora eu não a visse a comer chocolate. Às vezes sentia o cheiro a canela no seu pescoço. Truques para me atrair? Talvez. Estão a funcionar, embora continue a não ser capaz de recordar as suas feições, quando estou longe.
Agora, traz sempre aquele homem consigo. Disse-me que era apenas um bom amigo e queria que eu o conhecesse. Não gosto nada dele, sinceramente. Fala mais do que ela, como se isso fosse possível! E eu sinto-me posto de parte, o que me irrita. Todavia, nunca lho digo, não sou capaz de ser sincero e avisá-la o quão aborrecido toda esta relação a três me deixa.
Ela já nem olha para mim, e eu aqui, mesmo à frente. Parece não me ver; só o vê a ele. Ela merce alguém melhor, para ser sincero. Bem, mas se é para ser realmente sincero, ele é melhor do que eu. Em todos os aspectos. Por isso é que ela o está a beijar. Então e eu?! Eu estou mesmo aqui!
Mas não estou. Não. Agora percebo. Não é ela o fruto da minha imaginação, eu sou o dela. Ou sou um fantasma, perdido na sua caminhada para o outro lado, apaixonado por ela. Um ou outro, nem interessa, pois começo a desaparecer. Quem me dera que a minha última imagem não fosse a vê-los beijarem-se. Que deprimente! Será que ela sabe realmente a chocolate, e cheira a canela? Estou mesmo nas últimas, sinto-me mais leve, como fumo suave. Não quero ir. Não quero que ela fique. Passei todos aqueles anos sozinho; não sei se morri ou se fui conjurado pela sua mente, mas este foi o melhor período da minha existência. Obrigada.
Será que vou ser capaz de me recordar do seu rosto?
Published on February 08, 2015 06:33
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