Jussara
Um conto de Bruno Ribeiro
Publicado na primeira edição da Revista Sexus
Ela tinha peitos medianos, pernas finas, branca, fria e abusada como naftalina, olhos negros e puxados. É assim que gosto de me lembrar dela. Eu não sei por que a amei tanto, mas amei, e a princípio eu me sentia bem com essa ideia.
Jussara sempre escrevia pra mim.
Os e-mails dela eram curtos, algo como “Oi tudo bem? Tá mó calor, te amo.” Toda vez que lia um e-mail dela eu pensava puta que pariu ela vai chutar minha bunda. Com o passar do tempo, descobri que essa concisão epistolar tinha origem no medo dela de escrever errado. Gramática nunca foi o forte de Jussara, e ela era orgulhosa. Sabia que sou rigoroso com isso, e preferia me ferir com seu minimalismo a escrever um solilóquio de três páginas cheio de assassinatos gramaticais. Ela tinha dezessete anos nessa época. Fugiu do colégio, pais tiraram ela de casa. “Não vamos sustentar uma vagabunda” disseram. Vagabunda é igual a “vou estudar música, papai e mamãe.” Ela sempre tocou violino, apaixonada por Bach. Quando tocava largo ma no tanto, coberta pelo lençol fino e azul da sua cama mofada, eu confesso que ficava emocionado. O lençol sempre escorregava, deixando um pedaço dos seus mamilos aparecerem, e aquilo parecia uma pintura clássica. Uma obra incompleta de Caravaggio. Jussara gostava de pintar também, mas nunca teve talento para a coisa. Era uma esforçada. Na verdade, Jussara gostava de tudo, mas não queria nada. Tinha talento para a música, mas não corria atrás. Um dia, recebi uma carta dela, no seu tom habitual (econômica nas palavras e adjetivos). Ela dizia que iria participar de um concurso de beleza.
Respondi a carta. Uma resposta de quatro páginas.
Acho que nunca usei tantos adjetivos na minha vida.
Elogiei seus cabelos, olhos, boca, tamanho, boceta, bunda, disse que ela era um triunfo no coração dos fracos. Resumindo, foi uma das coisas mais toscas e deploráveis que já escrevi na vida. Até fiquei pensando se mandava ou não, mas no final das contas, eu mandei. Algumas semanas se passaram, ela me respondeu através de um e-mail. Dizia: “No hotel de sempre. Recebi sua carta. Chega disso. Venha me ver, estou molhada. Aliás, ensopada.”
Uma semana depois, peguei um trem para La Plata, cidade em que ela estava morando. É perto de onde eu vivia na época, Buenos Aires. Antes de ir, liguei para ela, e não parava de falar sobre o concurso de beleza. Pelo visto foi uma grande decepção. Quando cheguei à sua casa, uma gorda usando um vestido fétido abriu a porta, chamou Jussara, enquanto eu esperava na sala de estar apertada, com um tapete vermelho imundo e alguns quadros de péssimo gosto presos na parede que estava quase despencando. Quando Jussara entrou parecia uma Deusa. Não consigo pensar em outra palavra (e essa é bem idiota), mas foi a única que pensei quando a vi com aquele short jeans e regata dos Sex Pistols. Os dias que seguiram foram incríveis e destrutivos. Vimos muitos filmes, todo dia assistíamos a uns quatro. A gordona vivia com ela, mas trabalhava o dia inteiro em uma fábrica. Chegava cansada e fedendo, dava boa noite e ia para o seu quarto. Ela passava a noite inteira escutando umas cumbias escrotas. Eu e Jussara não nos importávamos, colocávamos os filmes italianos e franceses no volume máximo e esquecíamos a vida que nos rodeava. Trepavamos como coelhos viciados em ostra (eu fui o primeiro cara com que Jussara trepou e isso me custou caro no final das contas). Ela sempre gostou que a agarrassem com força, comendo com certa fúria. Eu metia como se quisesse empalar Jussara. Sua boceta apertada, sem pelos e frágil, sentia toda aquela morte peniana adentrar, e ela gritava, me arranhava, chorava de prazer e libertação, enquanto nossos suores tornavam-se um. Nesses dias doces e amargos, eu conheci os amigos maconheiros e (pseudo) artistas de Jussara. Fomos para festas terríveis, locais apertados e com músicas no volume máximo, assuntos cansativos e cheias de pessoas burras que se achavam inteligentes. Até que chegou o momento. O momento em que perguntei para Jussara se ela queria morar comigo em Buenos Aires.
Eu já sabia a resposta dela.
Depois de dois meses, peguei o trem de volta para Buenos Aires. Lembro que foi uma viagem terrível.
Jussara mandou uma carta, a maior que ela já escreveu, explicando o porquê de não poder ir. Conversávamos bastante pelo telefone, eu ainda mandava cartas para ela, e a vida foi nos atingindo, até que ficamos um tempo sem nos falar.
Fui para o Brasil fazer alguns trabalhos e de algum modo ela descobriu o endereço em que eu estava. A carta que ela enviou dizia: “Sinto falta do seu pau. Do seu cheiro. Da sua nuca. Do seu cabelo enrolado. Sinto falta do dia em que você me chamou para viver contigo. ps: me esforcei pra escrever algo bonito, espero que passe pelo seu crivo.”
Não passou pelo meu crivo, mas fiquei de pau duro.
Alguns anos depois, amigos de Jussara me contaram o que andei perdendo. Em detalhes. Sempre me contavam de maneira diferente a mesma história, como em um telefone sem fio, mas no final das contas o que eu achava da vida de Jussara não importava (afinal, sou um personagem pequeno nessa história). Ela havia se casado. E o sortudo foi um dos artistas maconheiros que conheci nas malditas festas que ia com ela em La Plata. Jussara casada. Vê se pode. O marido dela trabalhava com artes visuais. Não sei detalhes. Mas depois de um ou dois anos (minhas fontes telefone-sem-fio sempre eram falhas nesses detalhes) eles se separaram. O cara gritou, Jussara berrou, ela o empurrou, ele deu um soco que deslocou o queixo dela e quase arrancou o nariz do rosto. Descobri depois que ele treinava boxe. Às vezes penso em Jussara, andando pela bela cidade argentina de La Plata com o seu queixo pendurado e molenga, enquanto ela o segura com as duas mãos, andando toda torta, buscando algum hospital, enquanto pede ajuda em uma linguagem deficiente e inaudível.
“aiujjjdaaaa…”
E o queixo vazando.
Sinto-me um filho da puta por ficar rindo disso.
Mas o que acho engraçado mesmo é a operação de hemorróida que ela fez na noite do casamento. Tipo, o cara vai casar com a mulher sabendo que o cu dela tá todo bichado. “No cuzinho não vai rolar hoje, meu bem, foi mal.” Porra, isso é muito cômico. Operar o rabo na noite do casamento. Imagina se o cara curtir chupar cu? Eu sempre gostei de chupar o rabo da Jussara, era doce, levemente amargo, deixava meu pau duro na hora. Mas cuzinho fudido de hemorróida é foda. Enfim, esses detalhes falam mais de mim do que dela.
De acordo com os amigos de Jussara, ela conseguiu achar o amor da vida dela (depois do filho da puta que quase arrancou o seu rosto). Jussara arrumou emprego em uma agência de publicidade, conheceu gente nova, estava sorridente e feliz: havia se endireitado. E nesse meio tempo, ela começou a sair com o redator da agência. Mariano era sensível (nunca bateu nela), inteligente, valorizava música clássica e incentivava Jussara a voltar para o violino. Ele era meio teimoso (mas que argentino não é?)
Os dois nunca brigaram. Eles se casaram.
Quando ela estava com trinta e quatro anos, por algum motivo qualquer (tesão não se adestra) ela trepou com um estagiário da agência. Jussara cometeu o erro inocente de contar para Mariano. Ele ficou puto. Quebrou o violino dela, ficou bêbado, cheirou pra caralho nessa noite, tomou doce, vomitou no meio da rua e pediu pra uma puta chupar seu pau e engolir a porra.
O relacionamento acabou. Outro casamento destruído.
Quando ela estava prestes a fazer trinta e cinco, Mariano ligou para ela. Disse que gostava muito dela, a respeitava, nunca iria esquecê-la, mas que estava saindo com outra mulher. E que era para ela parar de ligar. Jussara até que aguentou bem o pé na bunda. (foi a primeira vez que alguém a dispensou). Entrou em depressão, tomou alguns remédios, mas nunca entrou em desespero. Agia com cautela, desconfiada, mas sem pirar. Nesse período, ela dormiu com vários homens. Eu fui um dos principais. Nessa fase Jussara-descartada, ela trepava com a mão na cabeça. Parecia uma puta profissional. Ela montava, chupava, segurava e ordenava. Amarrava-me na cama e começava a cavalgar como uma fera endiabrada e sem controle. Eu tinha medo de deixá-la sozinha. Sair para comprar cerveja e quando voltar, encontrar ela com os punhos estourados, rodeada de sangue e veias, vazando pelos orifícios que tanto adorava chupar. Depois deste período negro, sexualmente agressivo e silencioso (nós praticamente não falávamos um com outro) eu a abandonei. Mas dessa vez decidi ligar para ela constantemente, e manter contato próximo com um ou dois amigos dela, pois eles poderiam me atualizar dos detalhes da sua vida. Foi dessa forma que consegui saber de algumas coisas que não seriam fáceis de descobrir. Histórias que eu não precisava ouvir; o tipo de notícia que um ególatra precisa evitar saber.
Jussara voltou a trabalhar na agência, agora era diretora de arte sênior (seja lá que porra for isso) As pílulas novas que ela andava tomando conseguia regular a sua ansiedade. Ela foi transferida para o Brasil, estava em Belo Horizonte. Achei isso bacana, estar na terrinha de nascença sempre ajuda. Foi nessa bela cidade em que ela trabalhava que Rodolfo apareceu. Rodolfo era diretor de filmes publicitários e estava na luta para conseguir financiamento para o seu primeiro longa metragem. Foi em um desses trabalhos publicitários que ele conheceu Jussara. Rodolfo fazia questão de mostrar os quadros de Jussara (todos de péssimo gosto, volto a dizer) para os seus amigos. Ele até conseguiu que ela vendesse uns quatro ou cinco. Rodolfo era inteligente e tinha bom gosto (um clone de Mariano, versão brasileira). O tempo foi passando e Rodolfo conseguiu a grana para gravar seu filme. Ele perdeu o interesse por Jussara. Ela estava com trinta e sete, e lutou para segurar o suposto homem da sua vida.
A luta foi ganha.
Eles tiveram um filho.
De acordo com a própria Jussara, a criança conseguiu preencher o vazio da vida deles. De acordo com os amigos, ela estava ficando pior, mental e fisicamente, seja lá que porra isso signifique. Em uma ocasião, tive que ir novamente para o Brasil a trabalho. Estava em São Paulo e decidi ir para Belo Horizonte. Sempre quis conhecer a cidade, alguns amigos sempre me falaram bem de lá. Liguei para ela do meu hotel, disse que estava na cidade, e combinamos de nos ver no dia seguinte.
Quase não a reconheci.
Ela estava gorda, a maquiagem levemente borrada, suas roupas estilosas de outrora deram lugar para um vestido florido e horrendo. Para piorar, uma breve aura de frustração contornava seu corpo roliço. E isso me surpreendeu, porque nunca imaginei que Jussara aspirasse alguma coisa. E se você não aspira ser nada, então como pode se frustrar? Seu sorriso era de plástico, torto e forçado. Beijamo-nos na bochecha, como dois idiotas no colegial. Não tínhamos assunto, por mais que eu soubesse tudo de sua vida, não conseguia falar nada.
Até que respirei fundo e quebrei o silêncio.
“E seu filho?”
Ela disse que estava um pouco doente, nada demais. O clima frio e tal. Ela perguntou dos meus, eu respondi que estão arteiros como sempre. E ela mal me deixou terminar de responder para perguntar “como eu estou?” Essa pergunta foi cruel. É como se ela quisesse que eu socasse o rosto dela, como seu ex-marido fez.
“Mesma coisa.” Respondi.
Tomamos um café, andamos por algumas praças, e seguimos até o meu hotel. Olhamos-nos por um tempo, ela não sorriu, beijou meu rosto, eu beijei a testa dela, e dissemos tchau um pro outro.
Essa foi a última vez que vi Jussara.
Voltei para Buenos Aires. Ainda nos falávamos pelo telefone. Eu sempre ligava para ela entre o período de três ou quatro meses. Falávamos de assuntos triviais, tão abstratos quanto um quadro cubista. Jussara falava da agência, dos estresses do dia-a-dia, do marido que vivia viajando, do filho problemático, e às vezes ela até chorava. Em uma dessas ligações trágicas, eu disse que ela merecia o melhor.
“Que estranho.” Ela respondeu.
“O que?”
“De todas as pessoas que conheço você falar que eu mereço o melhor.”
Mudei de assunto e desliguei. Quase quebrei o telefone público (nunca tive celular ou qualquer merda do tipo, sempre me comuniquei por telefones públicos).
Três meses passaram, voltei a ligar. Jussara diz que está com câncer. Sua voz soa fria, levemente rouca, confesso que fiquei excitado. Lembrei dos tempos que ela gemia em meu ouvido, enquanto escutávamos The Clash.
“Enfia até sangrar minha boceta.” Ela berrava.
A lembrança cede lugar para a novidade. Ela conta como se fosse um fluxo de consciência, colocando exclamações onde não se deve, ignorando as vírgulas, praticamente contava para si, ignorando que havia outra pessoa escutando suas lamúrias. Até que ela começou a rir e desligou. Nessa noite eu dormi mal pra caralho. Tive vários pesadelos. Em um deles, Jussara aparecia rindo da minha cara. Só acreditei que ela estava com câncer quando dois ou três amigos dela confirmaram.
Meu mundo caiu, já cantaria o poeta.
Resolvi caminhar nessa noite, fui parar em Puerto Madero. Fiquei vendo a lua cheia, segurando minhas lágrimas, que quando resolveram descer, salgaram meus lábios secos. Minha cabeça estava prestes a cair, tudo girava, procurei por cigarros e achei um. Acendi, com as mãos tremulas, e fiquei imaginando ela no hospital. Os médicos falando termos complexos, o marido dela ajoelhado, enquanto os amigos de Jussara tentavam acalmá-lo em vão. Ela estaria deitada. Olhos abertos. Mórbida. Fria. Vegetal. Eu não poderia tocar nela, trepar, conversar, ajudar. Não agora. Essa Jussara não me salvaria. Tinha semanas que eu ligava duas vezes ao dia. Nossas conversas eram curtas e idiotas, e o que eu realmente gostaria de dizer, eu não dizia. Ela esperava, mas eu não falava. Às vezes, um silêncio cruel reinava entre nossas ligações: ela sabia, eu sabia, mas ninguém verbalizava. Eu deveria ser o orador, mas não conseguia.
“Tchau, se cuida.”
“Tchau.”
E assim terminava outra conversa sem futuro.
Uma vez, eu falei com o filho dela. Outra vez com Rodolfo. Eles estavam bem, não aparentavam estarem nervosos feito eu. Jussara uma vez disse que estava preocupada comigo. Não respondi, disse que ligava depois. No dia em que ela iria ao hospital, eu liguei e quem atendeu foi Rodolfo. Ele disse que ela não estava. Perguntei se ela estava no hospital. Ele engasgou um pouco para responder: “ela sumiu faz três dias.” Pelo tom de voz, suspeitei que Rodolfo pensasse que Jussara estava comigo.
“Ela não ta comigo.” Respondi na hora.
Tomei um banho, me arrumei e aguardei. Jurava que ela apareceria no meu apartamento. Ela sabia o endereço, sabe andar em Buenos Aires como ninguém, eu sabia que ela se lembrava do meu endereço. Sabia.
Esperei até dormir.
Sonhei com uma mulher linda e magra, com peitos fartos, boceta peluda, olhos azuis e caminhar sedutor. Ela não era Jussara. Era o seu oposto.
Neste dia, Jussara estaria fazendo quarenta e poucos anos.
Ela não apareceu no meu apartamento.
Nos dias seguintes, eu fiquei ligando para Rodolfo. Nada de Jussara. Com o tempo, a voz dele tornava-se mais melancólica, lembrava o violino que Jussara tocava para mim em sua quitinete. Na segunda semana, Rodolfo começou a falar do seu filho, o moleque ficava perguntando sobre a mãe dele.
“Toda noite eu me pergunto onde ela está.” O cineasta repetia entre soluços.
O marido dela precisava de um luto, de um amigo para segurar sua mão neste momento.
Até hoje espero ela bater na minha porta. Jussara nunca mais voltou.
Liguei para ele mais uma vez, escutei seu desabafo, disse que ligaria de novo e desliguei. Nunca mais liguei. O puto necessitava de um apoio, mas eu não estava em condição de dar isso para ele.


