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“Percebi que perdera, durante a noite, o corpo que tinha desde a adolescência, com o seu sexo vivo e secreto, que acolhera o do homem sem por ele ser modificado — devolvido mais vivo e ainda mais secreto. Agora tinha um sexo exibido, esquartejado, um ventre raspado, aberto ao exterior. Um corpo semelhante ao da minha mãe.”

“Cruzámo-nos com vários transeuntes, tinha a sensação de que eles me olhavam e que, ao ver o nosso par, sabiam o que acabara de acontecer. Sentia-me abandonada pelo mundo inteiro, à exceção daquela mulher velha, de casaco preto, que me acompanhava como se fosse minha mãe.”

“Mas não é necessário pensarmos nas coisas para elas estarem à nossa volta, e era certamente o facto de saber que o curso da vida continuava como antes para a maior parte das pessoas que me levava a repetir «que faço eu aqui».”

“Deveria concluir que ele já não sentia nada por mim, e que só tinha um desejo, voltar a ser quem era antes desta história, o estudante inteiramente preocupado com os seus exames e o seu futuro. Ainda que devesse intuir tudo isto, não tinha força para romper com ele, para juntar à busca desesperada de uma maneira de abortar o vazio de uma separação.”

“E, como sempre, seria impossível determinar se o aborto era proibido porque estava errado, ou se estava errado porque era proibido. Julgava-se em conformidade com a lei, não se julgava a lei.“

“Não ousavam dizer a verdade, essa de que não iriam arriscar perder tudo em nome dos belos olhos de uma rapariguinha estúpida ao ponto de se deixar engravidar. A não ser que, sinceramente, preferissem morrer a infringir uma lei que deixava morrer as mulheres. Mas todos deveriam pensar que, ainda que as impedissem de abortar, elas acabariam por arranjar maneira de o fazer.”