O anjo

A meio da tarde, sem alarido, a anja sentou-se na cadeira de plástico cor-de-rosa. Junto à mesinha cromada onde está o cinzeiro. Acendeu um cigarro e disse:


Selecionar é viver. Os jogos de poder e os interesses são o tabuleiro adequado para alguns adultos. Ficam de tal forma embrulhados nas estratégias complexas que deixam de reconhecer o resto. A única coisa que importa é a reciprocidade.


A mulher, sentada noutra cadeira de plástico, fumando o cigarro para o céu que protege o Saldanha, avenida movimentada e com um barulho específico que ela julga entender de forma adequada, encarou a anja enquanto travava o fumo.


Concordo consigo. Inteiramente. Mas como já não posso mais, quando acabar o cigarro vou atirar-me deste nono andar. E acaba-se assim a minha reciprocidade com o mundo. Deduzo que não seja possível salvar-me dos meus fantasmas. Por isso, se não for pedir muito, deixe-me estar, estou muito bem e não preciso de explicações.


A anja sorriu, afastou um pouco de cinza que esvoaçara a conspurcar a brancura das suas asas e disse


Não estou aqui para a impedir, nada disso. Estou aqui para a acompanhar. Não quero que caía no buraco das obras do metro. Negociei com o vento um sítio perfeito.


Qual? Que sítio?


Está pronta?


 


A mulher deu a mão à anja, sentindo-se tranquila. Colocou-se de pé na cadeira de plástico, subiu o parapeito de cimento e atirou-se.


Nunca mais se soube nada dela.


O trânsito no Saldanha continuou caótico.


 

 •  0 comments  •  flag
Share on Twitter
Published on November 30, 2016 11:56
No comments have been added yet.


Patrícia Reis's Blog

Patrícia Reis
Patrícia Reis isn't a Goodreads Author (yet), but they do have a blog, so here are some recent posts imported from their feed.
Follow Patrícia Reis's blog with rss.