O anjo
A meio da tarde, sem alarido, a anja sentou-se na cadeira de plástico cor-de-rosa. Junto à mesinha cromada onde está o cinzeiro. Acendeu um cigarro e disse:
Selecionar é viver. Os jogos de poder e os interesses são o tabuleiro adequado para alguns adultos. Ficam de tal forma embrulhados nas estratégias complexas que deixam de reconhecer o resto. A única coisa que importa é a reciprocidade.
A mulher, sentada noutra cadeira de plástico, fumando o cigarro para o céu que protege o Saldanha, avenida movimentada e com um barulho específico que ela julga entender de forma adequada, encarou a anja enquanto travava o fumo.
Concordo consigo. Inteiramente. Mas como já não posso mais, quando acabar o cigarro vou atirar-me deste nono andar. E acaba-se assim a minha reciprocidade com o mundo. Deduzo que não seja possível salvar-me dos meus fantasmas. Por isso, se não for pedir muito, deixe-me estar, estou muito bem e não preciso de explicações.
A anja sorriu, afastou um pouco de cinza que esvoaçara a conspurcar a brancura das suas asas e disse
Não estou aqui para a impedir, nada disso. Estou aqui para a acompanhar. Não quero que caía no buraco das obras do metro. Negociei com o vento um sítio perfeito.
Qual? Que sítio?
Está pronta?
A mulher deu a mão à anja, sentindo-se tranquila. Colocou-se de pé na cadeira de plástico, subiu o parapeito de cimento e atirou-se.
Nunca mais se soube nada dela.
O trânsito no Saldanha continuou caótico.
Patrícia Reis's Blog
- Patrícia Reis's profile
- 84 followers

