De amores impossíveis e inatingíveis: Tristão e Isolda, Quéreas e Calírroe, e Beren e Lúthien
O impossível amor de Tristão e Isolda é um dos mais antigos e famosos romances da cultura literária ocidental. A história do casal se encaixa dentro do ciclo arturiano, que tem versões tanto da cultura celta como da tradição medieval, sendo Tristão um dos cavaleiros da Távola Redonda.
Tristão, em uma viagem à Irlanda, conhece a princesa Isolda e ganha o direito à sua mão após derrotar um dragão que assolava as terras da ilha esmeralda. Contudo, não é para si que ele a deseja, e sim a seu tio, Marcos, o rei da Cornualha. Isolda, a princípio, se ressente de Tristão por não querer se casar com ela, mas logo acaba convencida de que se casar com um rei seria muito mais adequado a seu estatuto de princesa. Para ajudá-la no casamento, sua mãe lhe dá então um vinho incrementado com uma poção do amor, com instruções rígidas de que ela só deve compartilhá-lo com seu futuro marido, de forma a garantir que tenham uma união de amor.
O destino, no entanto, resolve pregar uma peça em Isolda e Tristão. Presos juntos no navio que os levaria à Cornualha, a criada de Isolda acaba por servir a eles o vinho enfeitiçado, deixando os dois, portanto, inegável e eternamente apaixonados um pelo outro. Entretanto, de forma a manter sua honra, Tristão não pode desposá-la, pois já a havia prometido ao tio.
A isso se seguem inúmeras desventuras amorosas entre os dois que, mesmo após o casamento de Isolda, continuarão a se amar e a se encontrar escondidos. A versão mais conhecida contemporaneamente, do francês Joseph Bédier (1864-1938), é um compilado das várias fontes medievais às quais teve acesso, narrando desde a infância de Tristão até sua morte.
Histórias de amor entre cavaleiros e suas damas inatingíveis são um tropo recorrente no que hoje chamamos de romances de cavalaria, um gênero literário medieval, composto majoritariamente em prosa (mas não somente). Nessas obras, quanto mais difícil o amor e mais inacessível a dama, melhor. Para nossa percepção moderna, a coisa pode parecer toda muito exagerada e melodramática, mas é inegável o apelo que tinham ao público da época, indo culminar mesmo nos famosos dramas de Shakespeare — há amor impossível mais famoso do que o de Romeu e Julieta?
Apesar de associarmos essas desventuras amorosas ao período medieval, porém, é na Grécia Antiga que elas terão seu primeiro momento de ascensão. No século I d.C., já em tempos de dominação romana na Grécia, surge o primeiro espécime de um gênero que se tornaria ainda mais popular em latim: o romance antigo. Frequentemente negligenciado tantos nos estudos clássicos quanto nos estudos de teoria do romance, o romance antigo é um gênero que lança ao solo literário as primeiras sementes do que viria a ser o romance moderno.
O primeiro exemplar desse gênero que chegou até nós foi Quéreas e Calírroe, escrito por um Cáriton de Afrodísias do qual temos pouquíssimas informações. A trama revolve ao redor do casal que a nomeia, e começa de um jeito muito promissor: os jovens se apaixonam e chegam mesmo a se casar.
No entanto, a partir daí tudo parece dar errado. Há crises de ciúmes, uma falsa morte, sequestro por piratas, distanciamento, novos pretendentes e até mesmo uma guerra! Tudo isso para garantir que nosso casal só será reunido bem ao final da história. E a Quéreas e Calírroe se seguem diversos outros romances, que pavimentarão o caminho para nossos cavaleiros e damas medievais, 400 anos antes do começo da Idade Média.
Apesar das diferenças culturais claras — afinal, os valores da antiguidade e do medievo muito se diferem um do outro —, em especial em se tratando do dever masculino e do que era esperado das mulheres em cada período, é impossível não reparar as semelhanças entre uma obra e outra ao lê-las.
A lealdade entre o casal é uma delas — e é interessante notar que, tanto para Isolda quanto para Calírroe, fidelidade não tem nada a ver com essa lealdade. Isolda se casa com Marcos, Calírroe também acaba se casando novamente, acreditando na morte de Quéreas, contudo, apesar disso, ambas, em seus corações, mantêm-se leais a seus verdadeiros amores (Tristão, para a primeira, e Quéreas para a segunda), e é isso que vale mais do que qualquer mera fidelidade sexual.
Outra característica compartilhada pelas narrativas são as aventuras vividas pelo casal, forçando-os a utilizar de suas melhores habilidades para permanecerem juntos. No caso dos homens, é a destreza em batalha que sobressai — Tristão mata um dragão, Quéreas chega mesmo a travar uma guerra por Calírroe —, contudo nas mulheres é a sagacidade que salta aos olhos. Calírroe e Isolda valem-se de estratagemas e jogos de palavras muito bem tramados para conseguirem sair de situações potencialmente embaraçosas e chegarem àquilo que mais desejam: estar na companhia do amado.
Tristão e Isolda tem Quéreas e Calírroe como paradigma passado, mas também foi fonte de inspiração futura. Como não vê-los em Beren e Lúthien, de J. R. R. Tolkien?
Integrando as narrativas da Terra Média, célebre pel’O Senhor dos Anéis, Beren e Lúthien conta a história do primeiro casal interracial entre humanos e elfos. Ao passear um dia pelo bosque, o humano Beren encontra a elfa Lúthien, enquanto essa canta uma linda canção. Os dois se apaixonam e Beren vai até o pai de Lúthien para pedir sua mão em casamento. O rei elfo, no entanto, não cederá sua linda filha a um mero humano tão facilmente e declara que Beren só poderá desposá-la se trouxer as joias silmarils para ele.
Beren aceita a missão e é acompanhado pela própria Lúthien. Juntos, então, passarão por diversas aventuras para provar seu amor e poderem ficar juntos. Mais uma vez salta aos olhos as habilidades físicas e guerreiras masculinas (de Beren, portanto), enquanto cabe à Lúthien à destreza e sagacidade de tramar bons planos (Beren jamais teria recuperado as silmarils se não fosse pela inteligência de Lúthien).
De uma forma ou de outra, com desfechos felizes ou nem tanto, prevalece no fim o amor, e sua capacidade sobre-humana de superar todo e qualquer obstáculo para ser concretizado.
Obras referidas:
O romance de Tristão, Béroul (trad. Jacyntho Lins Brandão – Editora 34, 2020)O romance de Tristão e Isolda, Joseph Bédier (Editora Martins Fontes, 2016)Quéreas e Calírroe (trad. Adriane Duarte – Editora 34, 2020)Beren e Lúthien (Editora Harper Collins, 2018)

