As putas que vejo da minha janela e as que casam com homens ricos

Depois de ver este vídeo, resolvi recuar no tempo: 
 @_demochilaascostas_
Como ressalva, antes de falar sobre o vídeo, permitam-me:Sou nascida e criada em Lisboa, alfacinha de gema dos quatro costados, por assim dizer: os meus pais já nasceram, viveram sempre em Lisboa aquando do meu nascimento e de meus irmãos, já os meus quatro avós vieram muito jovens para a capital, onde fizeram a sua vida; tendo nós, os netos, três costelas beirãs (das Rosas de Santa Teresinha e das filhós) e uma costela da zona Oeste (da pêra-rocha e a quase extinta maçã riscadinha). Sim, sou muito lisboeta! Em tempo de escola havia uma certa brincadeira - hoje talvez lhe chamassem bullying, eu não - pelo facto de eu, na Páscoa, não ir passar férias com a família à terra. Sendo lisboeta eu "não tinha terra", como os meus colegas de escola e amigos que iam passar esses dias em casa dos avós em alhures.
Os nossos pais, avós (e até bisavós num último período) e os miúdos, vivíamos todos juntos, uma feliz e bonita família alfacinha, ali bem semeados no Bairro de Alvalade. 
Lisboa é composta de muitos bairros e a cada um é-lhe atribuído um estar ou um comportamento diferente. Em Alvalade? Bom, eu fui semeada entre "Betos", contudo vi-me sempre mais como uma atrevida papoila do campo que nasce por entre a calçada portuguesa, ainda que a minha esmerada educação tenha cheiro a rosas de Santa Teresinha e a maçã riscadinha. Nunca me identifiquei como tal e, mais tarde, continua até hoje, a brincadeirinha que nunca considerei bullying, pelo facto de viver em Aveiro, sendo lisboeta. Não o encaro como sobranceria, apesar de assim parecer – já me disseram –, se não, pelas minhas vivências, que foram apenas diferentes.Ninguém é igual a ninguém! Eu não o almejaria jamais - na minha infância e adolescência rebelde que nem papoila - tornar-me em mais uma beta de um premonitório rebanho!
Tantos avós e bisavós que "deram o salto" (digo, na fronteira, a escapar à PIDE, para quem não sabe a razão desta expressão) e foram trabalhar, viver outras vidas. Outras famílias foram viver para a capital, os designados verdadeiros lisboetas dos sete costados (hummm, o que terá acontecido ao oitavo, para cair em desgraça e nem na expressão ser contemplado...?), ao longo de décadas e regimes foi acontecendo esta movimentação de seres por Lisboa; se o pensarmos, ainda hoje, tantos jovens que ao estudarem na capital, por lá se fixam ou vão para outro lado. 
O verbo MIGRAR sempre esteve no sangue português!
Quando tinha 20 anos, nos anos ‘80 (depois da morte da minha mãe), saí da bolha em que cresci e fui trabalhar para um outro Bairro diferente do meu. Lá, se tornou o meu escritório, alugado na Rua da Palma, no Intendente, a uns parcos quarteirões de distância do Martim Moniz. Foi a fase em que comecei a concorrer e vim a ser cronista em jornais e revistas. Nessa época fiz também ilustrações para outras publicações que foram publicadas. Estes, desenhava e pintava a lápis de cor e os textos, esses, escrevia-os na minha mais recente aquisição: uma máquina de escrever toda moderna!, que hoje ainda possuo, dizem vintage. Entregava os textos dactilografados, enviados por correio – havia uma estação ali perto. Muitas vezes não tinha o cuidado de guardar uma cópia, apenas o jornal ou revista com o meu trabalho publicado, a quem o bichinho do tempo se encarregou de os rendilhar a ponto de serem nada mais de que lixo; igualmente as mudanças, com suas inúmeras caixas, arrasam as memórias antigas, razão por que perdi muito do meu trabalho inicial. 

O Intendente era tão diferente de Alvalade: na Avenida da Igreja (que cruza com a Avenida de Roma),  têm vasos ao redor da porta de cada loja, o maravilhoso Jardim do Campo Grande, o maior de Lisboa, à época bem cuidado, onde as crianças brincavam e os idosos apreciavam as mini-saias – dito por um dos meus bisavôs. Foi onde aprendi a remar no enorme lago onde alugavam botes. Ainda hoje, é o único Bairro onde os que por lá passam, percebem que os condutores dos carros param em cada passadeira de peões. Algo que vim a reparar que acontece, também em Aveiro, que é muito do meu agrado.
Os Anjos Do Intendente - por A.MagalhãesO Intendente era um bairro mais antigo: Pombalino ainda, uma zona feia e escura com ruas e ruelas estreitas.Através da minha janela de pé direito enorme, tendo os vidros ondulados de tão antigos, com a massa de vidraceiro descascada com a tinta que lhe tinha sido aplicada por cima, podia espreitar, com o meu olhar altaneiro de um primeiro andar, a cada esquina, recanto e entrada de prédios só mulheres, portuguesas; a oferta eram os seus serviços sexuais e os homens que as procuravam e desapareciam escada acima. Sim, eu trabalhei na zona das putas, sem problema algum, sem nunca ser importunada, por me diferenciar ao envergar o sobretudo do meu avô: enorme de ombros descaídos, tão na moda nos anos ’80. [inserir foto minha a entrar no escritório com o casaco do avô Xico, procurar e digitalizar]
E agora, sim, acerca do vídeo inicial.Vi a cada dia a mudança acontecer. Sempre foi uma zona da minha cidade de emoções fortes. Almoçava muitas vezes numa cantina comunitária de uma organização comunista, a comida era caseira e maravilhosa, a um preço quase simbólico: era um serviço prestado à comunidade. 
As lojas na Alm Reis  (é uma avenida, a Av. Almirante Reis; é como nós, alfacinhas, a chamamos, tal como ao dizermos, cá em Aveiro, "vou à Avenida" sabemos ser a Av. Lourenço Peixinho) eram quase todas de seguida e praticamente iguais; de preferência electrodomésticos, tecidos, atoalhados, loiças de cozinha e mesa, onde as noivas compravam o seu enxoval, tal como eu o vim a fazer, já desacompanhada da minha querida mãe que tinha partido no ano anterior. Observava as outras noivas com as mães e uma vez mais, ainda que bem acompanhada por minhas avós, senti a necessidade de, aquele momento, partilhá-lo só com a minha mãe. 
Reparava nas outras mães.Não eram como a minha, uma eterna menina, discreta e bem comportada. Namorou com o meu pai, desde a meninice de ambos, viviam frente a frente, casando muito jovens, sendo eu ao primogénita deste lindo amor. Sim, a minha mãe era diferente das outras mães que faziam "frete": já as conhecia desde o tempo de escola e notava a diferença. Sei que com o seu discreto bom gosto muito me ajudaria, ainda que eu, com o sentido prático do meu pai, tenha escolhido um serviço raso, todo branco, apenas com um rebordo inovador que lhe dava um toque de elegância e irreverência, distinto dos expectáveis dourados que via as outras mães aconselharem as suas filhas, noivas como eu.  Eram aquelas mães aprumadamente enfadadas, até naquele momento especial para com as suas meninas. Eram as que escolhiam o serviço mais caro, Vista Alegre, pois claro!, para que servia o cheque em branco que o marido havia passado, entre a torrada matinal e um gole de chá de cidreira? Nenhuma filha delas poderia casar sem um serviço da porcelana mais celebrada! Eu sim. Escolhi um criativo serviço todo branco e bem mais barato para não sobrecarregar as minhas avós. 
Eventualmente deixei o escritório no Intendente, levando a minha fiel máquina comigo, porque depois dessa época conturbada – para dizer o mínimo – da morte da minha mãe e do meu súbito matrimónio, resolvi voltar a estudar – já casada – o que não correu como esperava: nem o casamento, nem os estudos. 
Tudo mudou, anos mais tarde, quando o António Costa "assentou arraiais" no Intendente, enquanto Presidente da Câmara e toda a remodelação que fez à sua volta, reabilitando tudo até ao Martim Moniz – obra feita: da Almirante Reis, em diante, até à Baixa Pombalina. O final da Alm Reis, acaba com o Largo do Martim Moniz, antes mesmo de entrarmos na Baixa Lisboeta, chegando à Praça da Figueira, já a salivar até à porta traseira da saudosa Pastelaria Suíça, passando pelo Hospital das Bonecas. Não sei para onde foram deslocadas ou acompanhadas, mas acabaram com a presença das senhoras de cama incerta e com as barracas onde muitas pessoas viviam em situações desumanas. Aí, foi construído um Centro Comercial, nas obras do Presidente da Câmara de Lisboa, António Costa.Obra feita muito criticada na época. É este costume tão lusitano de Velho do Restelo, muito burguesia lisboetazinha que tanto me incomodava em jovem, era um resistir até à última, às novidades que vão surgindo. Dizia Fernando Pessoa, muito tempo antes, que primeiro se estranham e só depois se entranham… 
Ao longo dos anos os portugueses, principalmente os lisboetas (alguns?) perceberam a mais-valia de ter um Centro Comercial sem Benetton mas com todo o colorido, ingredientes e especiarias da comunidade Asiática e Hindu (inicialmente não havia distinção de que país realmente eram, a não ser que tivéssemos o cuidado e delicadeza de perguntarmos: paquistaneses ou vietnamitas para dar como exemplo, são simpáticos e afáveis com a curiosidade dos portugueses e deixam-nos perguntar sobre a sua cultura, tal como é mostrado no vídeo).  Com a construção do diferente jardim no Martim Moniz penso que foi o momento em que verdadeiramente nós, os lisboetas mais afoitos e curiosos, conhecemos hábitos, alimentação e festividades tão diferentes das nossas ainda acinzentadas. Em contraponto, o charmoso Jardim do Campo Grande estava a entrar num estado de degradação que muito triste me deixava: porém, o Martim Moniz veio trouxe cor e uma outra identidade a Lisboa. Quando ficou na moda, já foi aproveitada e aportuguesada por alguns comerciantes, mas a alma, Ahhh!, essa permanece a da multiculturidade, a do entrosamento entre as gentes. Lisboa cresceu e a zona histórica, incluindo o Martim Moniz (tal como o próprio, logo ali aos pés da porta do nosso Castelo de São Jorge – desculpem-me, recuso-me a explicar!!, ide ler livros, google, o que for! –, perdeu-se dos lisboetas, tornou-se na Lisbon de hoje, com todo o encanto, aprendizagem e engrandecimento que esta multiculturalidade nos trouxe e se foi instalando loja após loja no bairro, indo por uma aculturada Alm Reis acima. 
Nunca mais trabalhei naquela zona, até porque a determinada altura já o fazia no sossego do meu lar, celebrando a celeridade da internet. 

Gosto do pó com cor. Digo, da explosão colorida da festa Bollywood Holi, celebrada e anualmente organizada com a vontade e alegria da comunidade Hindu que se dá a conhecer neste festival – a sua comida e cultura, no que era o antigo, feio e cinzento Largo do Martim Moniz, feito bonito jardim cobrindo de arco-íris todas as pessoas, indiferenciando roupas e cores de pele. Não é tão bonitos ficarmos todos iguais naquele festival?, tantos anos depois das barracas que abrigavam tanta pobreza e miséria tão lisboeta, tão portuguesa? 
N.B. 1 - O verbo MIGRAR é global!N.B. 2 - Discordo do facto de não haver mulheres na rua ou nas lojas. São, muitas vezes, as que estão à frente das lojas, com as irmãs e seus filhos por ali. Na cultura hindu as senhoras com mais idade são ainda recatadas, a tratarem do maridos filhos, noras e netos, já as mais novas, estudam, trabalham, são do mundo!N.B. 3 - O Jardim do Campo Grande foi recuperado! N.B. 4 - A profissão mais antiga do mundo vai continuar, exactamente tal como as outras. 


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Published on March 10, 2024 12:30
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