Medo do escuro
A Humanidade deixou de ter medo do escuro porque habituou-se a viver com fantasmas.
O evoluir da tecnologia tem os seus lados positivos e negativos, e longe de mim rejeitar os positivos. O problema é que, de tão satisfeitos que estão com os efeitos positivos, as pessoas tendem a ignorar os negativos, porque implicariam abandonar facilidades a que se acomodaram.
No princípio, os fantasmas desapareceram. E estou a usar o termo não no sentido tradicional, que implica espectros e almas e visitas de pessoas mortas, mas no sentido que eventualmente ganhou, abarcando o antigo mas expandido a todo o tipo de criaturas e visões, sejam de origem presumivelmente tecnológica ou sobrenatural.
Falou-se muito de como as pessoas deixaram ver OVNI, ou almas do outro mundo, ou monstros na água ou na floresta, porque toda a gente passou a andar com câmaras de alta definição no bolso, passando a registar para análise posterior tudo o que achava estranho. A passagem dos fenómenos extra-naturais da mente para a tecnologia fez com que aos poucos fossem desaparecendo.
Mas eventualmente, começaram a ressurgir. Mais e mais pessoas diziam ver e ouvir coisas que não podiam ser registadas pelas câmaras ou microfones pessoais, e que no entanto, todos os seus sentidos diziam que estavam lá. No espaço de meia dúzia de anos o fenómeno neo-sobrenatural espalhou-se como uma epidemia, e lembro-me de ouvir notícias dizendo que 90% da população mundial já tivera pelo menos dois episódios do género.
Passada uma década, só uma em cada dez mil pessoas não convivia diariamente com algo que poderia ser classificado de sobrenatural. Algumas pessoas viam monstros, outras parentes falecidos. A grande maioria escolhia não partilhar o que via ou ouvia ou simplesmente sentia com mais ninguém, mas admitiam que lhes acontecia algo do género.
À medida que mais e mais pessoas iam convivendo com fantasmas, começou a acontecer algo inesperado: iam perdendo o medo. Inicialmente toda a gente entrava em pânico, é verdade, mas à medida que os presumíveis entes sobrenaturais se iam tornando uma presença permanente, sem fazerem nada que prejudicasse as pessoas que os viam, estas iam aceitando a sua presença de forma cada vez mais natural. Algumas pessoas com problemas de nervos continuavam a não conseguir lidar com o assunto, mas existiam também aqueles que, vendo todos os dias entes queridos que já tinham falecido, encontravam algum conforto nas presenças espectrais.
Eventualmente, como o faz sempre que lhe dão tempo para isso, a ciência encontrou uma explicação. Os fantasmas vinham da tecnologia.
Já há muito tempo que se sabia que campos electromagnéticos intensos, quando aplicados directamente no cérebro, causam alterações sensoriais muitas vezes percebidas como paranormais. Lembro-me, por exemplo, de ouvir falar de um estudo em que voluntários cujos cérebros eram bombardeados em certas zonas com ondas magnéticas passaram a acreditar em Deus literalmente de um momento para o outro.
E a evolução da tecnologia obrigava à propagação do electromagnetismo. Fosse por questões de transmissão de energia ou informação, o facto é que toda a Humanidade estava banhada numa enorme sopa electromagnética, e ninguém se deu ao trabalho de considerar a sério o que a exposição diária estava a fazer aos nossos cérebros.
A consequência da descoberta não foi diminuir a emissão electromagnética. Para quê? Estávamos todos habituados ao nosso modo de vida, e entretanto tinhamo-nos habituado também aos nossos fantasmas. Tornaram-se parte do dia a dia, para quê livrarmo-nos deles? A única coisa que aconteceu foi que, como se presumiu que a explicação se aplicasse também à maioria das crenças populares ao longo dos séculos, a Religião caiu em desuso. As pessoas preferiam lidar com os seus medos e fantasmas directamente em casa, porque os tinham mesmo à sua frente, e sabendo de onde eles vinham, o medo foi desaparecendo, e a necessidade de mais explicações também.
Da mesma forma como a tecnologia conquistou o escuro literal ao iluminar a noite, também o fez com o escuro da alma, por assim dizer.
Mas nada dura para sempre. Nem o poder da tecnologia. E um dia, as coisas simplesmente apagaram-se. A electricidade foi-se, e toda a energia e comunicações também. Durante semanas, instalou-se o caos enquanto a civilização como a conhecíamos simplesmente se desmoronou. Nem quero pensar em quantas pessoas terão morrido.
Nem sequer sabemos como aconteceu. Sem maneira de comunicar a longa distância, só temos rumores e teorias.
Com o tempo, pequenas comunidades começaram a surgir. Não é a civilização que tínhamos, é mais parecida com a génese da civilização propriamente dita, mas é o que temos. Estamos a reaprender a sobreviver, e isso já é alguma coisa.
Mas olho à minha volta, e vejo que a maioria das pessoas voltou a ter medo do escuro. Quando pergunto negam-no, mas ele está lá. Seria de presumir que, agora que os fantasmas tecnológicos desapareceram da nossa vida, voltámos a ter medo de os encontrar. Mas eu não acho que seja isso. Acho que continuamos a saber bem de onde vinham todas as coisas de que tínhamos medo. Acho que ninguém se esqueceu que os nossos fantasmas vinham de dentro, logo não acredito que o medo do escuro venha daí.
O que eu acho, sinceramente, é que voltámos a ter medo do escuro porque quando entramos no escuro, estamos sozinhos de uma forma a que já não estávamos habituados.
Acho que temos medo do escuro porque nos mostra quão sós, no fundo, sempre estivémos.


