Quietude
Sempre odiei aqueles gajos que fingem que são estátuas. Odeio mais os mimos, sim, mas esses ao menos aparecem pouco. Os gajos-estátua hoje em dia estão por todo o lado. Até a caminho da minha casa costumo passar por um.
Há tempos tive uma discussão com a minha ex-mulher por causa das despesas do puto. O costume, pronto. É assim, ela não é má pessoa, e é boa mãe, mas por mais que eu lhe diga as coisas, por mais que eu insista, ela não me ouve e quer sempre fazer tudo à maneira dela. E depois ainda diz que eu tenho mau feitio, quando o dela é que, enfim.
Mas pronto. Tinha discutido outra vez com ela, e estava um bocado irritado, é verdade. Acho que foi por isso que dessa vez ver o homem-estátua me complicou tanto com os nervos.
Porque a questão é esta, eu mato-me a trabalhar para ganhar o pão, e todos os dias vejo o dinheiro a sair da conta, e aperto o cinto, e trabalho mais… E aquele gajo fica só ali. Parado, sem fazer nada de útil. Só a olhar para o vazio, sem ver nada, sem dizer nada. E só por isso, as pessoas atiram-lhe dinheiro aos pés, como se estar parado merecesse recompensa.
E pior que tudo, ele nem sequer é bom no que faz! Já por diversas vezes tinha ficado a vê-lo com atenção, e ele abana-se todo! Visto ao longe não parece, mas ele está sempre a mexer-se. São movimentos pequenos, mas são.
Ok, na maioria das vezes que estive a vê-lo estava a chuviscar, mas isso não desculpa nada.
Seja como for. Lá estava ele, sem fazer nada, e um homem para aí com uns trinta anos estava com um puto de uns cinco ao lado, e não só estavam todos contentes a ver o gajo parado, como lhe atiraram uma nota de cinco para o chapéu que estava no chão aos pés dele. Uma nota!
Pá, eu perdi a cabeça. Cheguei-me ao pé do gajo parado, e virei-me para o puto.
- Queres ver uma coisa gira? – Disse eu, e pisquei o olho.
Tanto o puto como o pai ficaram a olhar para mim. Eu cheguei-me ao gajo-estátua e comecei a soprar-lhe devagarinho para o ouvido. A minha ex costumava fazer isso para me irritar.
Mas o gajo-estátua não reagiu.
O puto riu-se, mas o pai ficou a olhar para mim com ar de quem tinha chupado um limão.
- Pai, o homem não mexeu na mesma! É uma estátua a sério! – Disse o puto.
O pai não respondeu, por isso respondi eu.
- Ai mexe mexe. Vais ver como mexe.
Afastei-me deles, e agachei-me à procura de pedrinhas, ou pedaços de terra, qualquer coisa. Consegui apanhar meia dúzia delas, e atirei o primeiro ao gajo-estátua, devagar porque não o queria aleijar.
- Olhe lá, não acha que está a abusar? – Disse o pai do puto.
- Porquê, é proibido? – Disse eu, e continuei a atirar as pedrinhas, tanto para ver o que o gajo ia fazer como para tentar fazer o outro mexer-se.
O outro não se mexeu, e o pai do puto deu a mão ao filho e foi-se embora, com aquele ar de quem sabe tudo e os outros não. Ainda estive para lhe dizer mais alguma coisa, mas não fui por aí. Continuei a atirar as pedras à estátua, cada uma com ligeiramente mais força, mas ele insistia em ficar quieto.
O gajo estava mesmo a começar a irritar-me.
Havia uma papelaria ali ao lado. Eu sabia que tinha um elástico no bolso, por isso fui lá e comprei uma caixa de agrafes pequenos. Meti o elástico à volta dos dedos para fazer como se fosse uma fisga, e comecei a atirar-lhe agrafes.
Ele continuou a não se mexer.
Por esta altura eu já estava um bocado a ferver. Aquele gajo não era mais teimoso do que eu, caraças, e ainda por cima, eu sabia, eu SABIA que ele não era assim tão bom que se aguentasse sempre. Estava decidido a não parar enquanto não o fizesse mexer-se.
Nesta altura houve pessoal a passar que viu o que eu estava a fazer. Ninguém teve coragem para se chegar muito a mim, mas mandavam bocas, do tipo “não tem vergonha”, “mas você não tem nada melhor para fazer”, “deixe o homem em paz”, “ele não lhe está a fazer mal nenhum”, e coisas dessas.
Eu caguei de alto para eles todos. Aquilo era entre mim e o homem-estátua.
- Que é que foi? – Disse eu sem ser para ninguém em particular, mas sempre de olho no gajo-estátua. – Que é que tem? Se ele não se aguentasse não vinha para aqui, não é? Ele aguenta. Ele é melhor que a gente, ele aguenta tudo e mais alguma coisa. Não é, ó preguiçoso?
Acho que foi por essa altura que guardei os agrafes e o elástico e me dirigi ao gajo.
- Não é? Tu aguentas. – Continuei eu, cada vez mais irritado. – Tu aguentas tudo. Tu és melhor que os outros! Tu és todo intelectual, e vens para aqui provar que és mais esperto que os outros porque consegues ficar parado! Ó meu Deus, que coisa tão boa! Que contribuição tão valiosa para a Humanidade! Um gajo que não se mexe! E é recompensado por isso, por não fazer esforço nenhum! Porque os caladinhos e quietinhos é que ganham as coisas boas da vida, em vez dos mauzões que gritam e barafustam! Não é, palhaço? Não é???
E finalmente, finalmente, o cabrão mexeu-se. Quando eu estava mesmo juntinho a ele, mesmo a gritar-lhe na cara, ele virou a cabeça muito devagarinho na minha direcção, levou um dedo à boca, e fez “shhhh”.
Eu passei-me. Agarrei-lhe o casaco e ia dar-lhe um murro nos cornos, mas pessoal que estava à volta agarrou-me e puxou-me para longe.
Não sei o que eles estavam a dizer, nem sei o que lhes disse eu. Sei que enquanto eles me empurraram para longe, eu via o gajo-estátua a mexer-se como se fosse um robot, e a voltar à posição em que estava.
- As estátuas não se mexem assim, cabrão! As estátuas não se mexem! Ganhei, ouviste? Ganhei!
Na altura estava contente, e acabei por ceder aos empurrões e fui-me embora.
Quer dizer, não era bem contente. Era uma mistura estranha, do tipo raiva e alegria misturados. Uma coisa desse género.
Depois a raiva foi passando aos poucos. A alegria também. Comecei a achar que se calhar tinha ido longe demais. Que é que eu tinha ganho com aquilo? Eu podia não concordar com o que o homem faz para ganhar a vida, mas que é que eu tenho a ver com isso? Que é que eu tirei de o tentar prejudicar, de o tratar aos berros?
De que é que me serviu perder a cabeça?
No dia a seguir, estava convencido que tinha que lhe pedir desculpas, e quando passei por lá cheguei perto dele. Ele lá estava, na mesma posição do costume. Sem se mexer, sem dar sinais de se aperceber de nada do que o rodeava, incluindo de eu estar ali. E eu ia pedir desculpas, juro que ia. Mas era esquisito. Ele não ia reagir às desculpas. Se reagisse teria que deixar de ser estátua, e eu ia sentir-me mal outra vez. As desculpas só me iam fazer sentir pior.
Acabei por não dizer nada. Larguei um suspiro, atirei uma moeda de dois euros para o chapéu, e virei-me para me ir embora.
Só que ele deve ter ouvido o meu suspiro, ou qualquer coisa. Porque quando me estava mesmo a ir embora, pelo canto do olho vi-o a mexer-se. E a mexer-se mesmo, como pessoa, não com aqueles movimentos de robot da véspera. E estava a mexer-se na minha direcção.
Eu não sabia como reagir, por isso quando ele meteu os braços à minha volta, eu não fiz nada. Ele puxou-me para ele, e deu-me um abraço. Apertado. Eu dei por mim a devolver-lho, sem saber bem porquê. Apertei-o também.
- Shhhh. – Disse ele outra vez, ao meu ouvido.
E em vez de me afastar, deixei-me ficar, sem dizer nada. Fechei os olhos e deixei-me estar no meio da rua abraçado ao homem-estátua.
Perdi um bocado a noção do tempo, mas acho que o abraço ainda deve ter demorado, porque lembro-me de ouvir moedas a cair no chapéu. Não tenho a certeza, mas acho que ouvi um “ohhhhh…” vindo não sei de onde.
Ele não quebrou o abraço. Eu também não. Ficámos os dois ali, tipo estátuas. Não sei para quê, e não sei porquê.
Sei que não me lembro da última vez que alguém me abraçou assim.


