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Livro II

"Dá a volta, entretanto, o céu, e cai sobre o oceano a noite,
a envolver de uma imensa trava a terra e o céu
e a cilada dos Mirmidões; dispersos ao longo das muralhas, os Troianos
emudeceram; o torpor tomou conta dos extenuados.
E logo a legião dos Argivos, em naus alinhadas, se pôs em marcha
desde Ténedos, por entre o silêncio cúmplice da lua emudecida,
a caminho de praias que bem conhecera"

"Logo irrompeu Eneias e refulgiu numa luz resplandecente,
semelhante a um deus no rosto e no porte, pois a mãe, ela mesma
o havia ordenado, de um sopro, com formosa cabeleira e a luz púrpura
da juventude e com nobreza venturosa no olhar,
qual beleza que as mãos acrescentam ao marfim ou quando prata
ou pedra de Paros são recobertas de fulvo ouro."

"Certo é que trazia suspenso do ombro, à maneira delas, o arco ligeiro,
qual caçadora, e soltara o cabelo ao sopro da brisa,
de joelho a descoberto e com um nó a prender a túnica que esvoaçava."

Reza-se o terço com o corpo presente
e meia dúzia de velhas rezou. Razavam a um Deus morto por um corpo morto. Aninhadas à volta, lembravam-me formigas em volta do cadáver de um grande insecto. (...) Era uma manhã de Inverno, uma luz fria entrava pelas janelas sujas.

Acaso o que procuramos é apenas a imagem de...?
Ema dizia:
- A Face de todas as faces. O que se procura sempre.

"Certa noite Águeda e eu ouvimos um grande estrondo como de tremor de terra: um telhado que abatera. Mas agora, nenhum rumor. Só a música. Vem pela janela, multiplica-se nos ocos da serra, avoluma-se no espaço. Mas é uma música suave, direi mesmo delicada. Lembra-me os veios de água pela Primavera, as flores alegres dos campos. Estarei alegre? Um acesso de ternura. Passa como onda na aragem fria."

Prefácio da versão francesa - Robert Bréchon

"estamos no espaço da Serra da Estrela coberta de neve, e a arte de Vergílio Ferreira consegue sugerir a impressão física dessa enorme presença muda que foi a testemunha da sua infância e marca o eterno limite em que vêm anular-ser agitação e o sofrimento humanos."

"Os fascistas eram sempre pagos pelos grandes senhores, os quais, não contentes com isso, ainda alistavam os filhos como legionários. Enraivecia ler a forma como tantos trabalhadores se tinham deixado engazupar por meia dúzia de patrões. "E ainda Carletto se quer fiar neles...", dizia para comigo. "E Luciano, que malhou com os ossos na cadeia por causa de semelhantes tipos..."

A velha Marina disse-me mais tarde uma coisa. Revistara-me a roupa e parecia descontente.
Não pertences ao Fáscio - observou-me um dia. - Não trazes contigo aquela camisa...
- É necessário trazê-la?
- O hábito faz o monge. A tua mãe nunca te ensinou isso? Vieste a Roma para ganhar dinheiro ou para o gastar?
Abanou a cabeça e acrescentou:
- Toma cuidado. Alguns mais espertos do que tu acabaram onde sabes...

"Corremos a casa e desencantámos café, carnes frias e licores. Pelas janelas entrava a claridade acinzentada própria daquela hora. Já não valia a pena acender a luz para vermos o que nos rodeava e descobrimos que estávamos lívidos, brancos como a neve, devido à noitada e à forma como a luz pálida do dia nascente nos iluminava a cara."

Não encontro a revista Ler nos quiosques, desde a edição Primavera 2025. A última que comprei foi a edição Primavera 2025, em Agosto. Aconteceu alguma coisa?

[Mortos]
Dou os bons-dias a tipos que já matei; passo na rua por alguns satisfeitos fantasmas que se espantam (gritam-me: Ó pá, inda és vivo?) quando me vêem respirando e mexendo dentro da minha farpela pobre. Dormi mais de dez anos com o cadáver da minha mulher e na mesma cama. Jamais nos conhecemos, fomos sempre dois mortos um para o outro. São coisas que acontecem" (O Teodolito).

Depois, já no liceu, começava a sonhar com a Feira [do livro], semanas a fio antes, cravava familiares, economizava, cheguei mesmo a empenhar um Menino Jesus de marfim, peça antiga e valiosa que, pela proximidade da Feira começava com receio de arejar o seu esconderijo no oratório. A volta a rogar catálogos e a receber negas risonhas, a escolha dos livros, os orçamentos, as namoradas a coisas que não podia almejar...

"Quanto a mim considero-me o único escritor português vivo. A minha obra é toda epistolográfica. Cartas e mais cartas. Hoje, com esta é a terceira. Cartas a pedir, cartas a agradecer. Cartas de caridade." (para Mário de Cesariny, Caldas da Rainha, 10 de Novembro de 1965).

Mas recordo um episódio. O Herberto deu-me quinhentos escudos para eu fazer a propaganda desse seu novo livro. 500$00 em 59, 60 era dinheiro, não se podiam deitar fora, cantava o Igrejas Caeiro. Ora, calhou que eu, prevendo a impossibilidade de lançar o novo livro do H.H., portanto era escusada qualquer publicidade, agarrei nessa massa e fui com a minha mulher, a Maria Helena, dar um passeio em perfeita harmonia xDDD

D[Diários]
11 de Dezembro de 1975: Coincidência: estive na madrugada a congeminar que o Natal vem aí e na miséria geral que anda caída nesta casa. Preparo golpada pela 2.ª feira, que é quando tenciono voltar às lides. Mesmo vendendo quase tudo (livros e revistas), as perspectivas não seriam brilhantes, porque os dias estão frios e chuvosos (há Verão desde Abril passado, sem piada política) e continuo com a tal tosse.

"Não quero o livro um mono, mas uma bomba."

Toda a escrita de Muller é um obsessivo diálogo com os mortos. Tal como o conceito benjaminiano de história perpassa, como um palimpsesto, muitos dos seus textos, também a sua visão da literatura é a de um processo que não conhece determinações cronológicas nem o fetichismo da inovação. A sua estratégia é, pelo contrário, desenterrar os mortos, de lhes retomar os textos, de os continuar

À crítica imediata compete, em especial, uma árdua e combativa vigilância para separar o trigo do joio. Aliás, ao crítico sociológico não se exigirá apenas uma cultura literária sólida e esclarecida. São-lhe indispensáveis uma técnica sistematizada e uma larga consciência das conexões do fenómeno literário com o complexo histórico em que se integra e que o determina.

Os camponeses de pé alinhados de costas para a pedreira. Ele olhou para eles, eles olharam para ele. Os olhos arregalados de medo, depois cerrados de ódio, depois novamente arregalados, depois novamente cerrados. Ele olhou para as mãos deles: desgastadas. Olhou depois para as suas próprias mãos desgastadas, suadas. E gritou a frase tantas vezes repetida, desta vez mais alto do que o habitual: FOGO SOBRE OS INIMIGOS

[Conto do escudeiro]

Durante um ano ou dois, só vi bondade,
E mal jamais lhe vira, aparente.
Mas lá ditou a sorte, infelizmente,
Que houvesse de partir um certo dia
Pra longe do lugar onde eu vivia.
Sofri? Não haja dúvidas. Sofri:
Nem sei bem descrever o que senti.
Mas uma coisa afirmo e sei dizer:
Por isto sei a dor de se morrer;
Senti a dor de o ver partir de mim.
Assim partiu, um dia, ele, enfim,

ANJO DESDITOSO 2
Entre cidade e cidade
Depois do muro o abismo
Vento pelos ombros a estranha
Mão sobre a carne solitária
O anjo ouço-o ainda
Mas ele já não tem outro rosto a não ser
O teu que eu desconheço

[final de 1990]

"O uso que Muller faz do conceito de história parte da rejeição da posição do cronista, mas também do filósofo, para se colocar na posição do poeta. Não se trata de contar o que se passou, como passou, nem de procurar enunciar uma explicação ou retirar uma ilação. Como assinala Eva Brenner, trata-se de confrontar "a sua audiência com enunciados, imagens e cenas montadas, justapostas para desmistificar a história."

"Qual lupa é a pobreza, pela qual
Se vêem dos amigos o real.
Assim, não te lesei, tenho a certeza.
Não me censures tu, pois, a pobreza.
Mas de ser velha ainda me censuras;
Decerto não preciso de escrituras
Que afirmem que o carácter virtuoso
Ensina a respeitar qualquer idoso
E a chamar-lhe pai, e assim honrá-lo;
Em muitos livros podes encontrá-lo.
E dizes, além disso que sou feia,
Então não temas cornos, que ideia!"