Status Updates From O Mendel dos Livros/A Viage...

E, logo que os pronunciou, compreendeu-os e encontrou a sua chave. A associação de ideias que tirou do fundo de um poço de águas adormecidas emergiu, nítida e palpável. Aquela recordação, precisamente aquela, aquelas sombras, estavam lá, no caminho, as sombras que tinham tocado, despertado, as palavras por ela pronunciadas. E, num frémito, ele percebeu, assustado, o sentido daquela revelação. (...)

Ele calou-se. Naquele segundo sentiu o mesmo. Mas já tinha passado: era preciso que qualquer coisa acontecesse.
- E se fôssemos andando? - sugeriu ele prudentemente.
- Está bem, vamos, vamos - murmurou ela baixinho. Ficaram os dois parados, afastados, como se qualquer coisa neles se tivesse quebrado. Foi então (ele esqueceu-se de lhe dar o braço) que se dirigiram, indecisos e perturbados, para a saída.

Ele tinha o sangue tão obediente, tão submetido ao respeito pela bem-amada durante tanto tempo santificada, que reprimiu uma vez mais os seus sentidos já em ebulição e se afastou dela, que, titubeante, se levantou escondendo-lhe o rosto. (...)

(...) Pois ela, aquela mulher sem estudos, pelo menos tinha conservado o livro para melhor se lembrar dele, e eu, em contrapartida, há muito que tinha esquecido o Mendel dos livros, eu precisamente, eu que devia saber que os livros só se escrevem para, depois de deixarmos de respirar, unir os homens e defender-nos perante o inexorável reverso de toda a existência: a transitoriedade e o esquecimento.

A viagem ao passado - 3,5

Muito interessante a forma como Zweig conta o efeito do tempo e de uma guerra em numa relação.A viagem de trem entre os protagonistas (apõs 10 anos separados) foi literalmente uma viagem ao passado. O efeito da distância e da ausência acaba por ser brutal. A vida segue e por mais que a tentemos, as coisas nunca voltam a ser como antigamente. O final poderia ter sido um pouco melhor.

Espaçava as frases, depois confundia-se, havia pausas e tensões que era preciso expular, num sobressalto de violência. Havia qualquer coisa entre eles, um obstáculo invisível contra o qual as suas perguntas e respostas chocavam como morcegos contra a parede. E os dois sentiam-no, passavam sem parar de um tema a outro, e , finalmente [...] a conversa esmorecia.

Reagindo a notícia de que a guerra começou na Europa:

"No seu primeiro furor, bateu de punhos cerrados na mesa, como se, com esse gesto, conseguisse o impossível: eram milhões de homens impotentes como ele a debaterem-se contra a parede do destino, aquela prisão".

…o amor só começa a existir no momento em que deixa de flutuar, doloroso e sombrio, como um embrião no interior do corpo e em que ousa ganhar nome, ousa reconhecer-se, com a respiração e com os lábios.Por mais que tal sentimento se escondachega sempre o momento que subitamente destrói o seu casulo e o lança das mais elevadas alturas ao mais fundo abismo,abatendo-se, com redobrada força, sobre um coração aterrorizado.

O Mendel dos Livros - 4,5

O primeiro conto deste livro é impactante. Zweig descreve os efeitos da onda nacionalista da primeira guerra mundial. Mendel, um alfarrabista de origem russa, mora em Viena e usa um café como "escritório". Vive uma vida normal e completamente adaptada até a guerra eclodir. Devido a sua origem e por ter alguns clientes de países inimigos, Mendel é duramente punido pelas autoridades.

...de todas as atrocidades e abusos criminosos desta guerra nenhum foi mais absurdo, infundado e portanto menos desculpável do ponto de vista moral do que a detenção e internamento atrás do arame farpado de civis inocentes já fora da idade de seram chamados a prestar o serviço militar, pessoas que durante muitos anos viveram num país estrangeiro como numa pátria e que,[...] perderam a oportunidade de escapar a tempo.

Por isso,quando vi que a fonte os oraculos,a mesa more de Jakob Mendel,estava vazia como uma lousa sepulcral, veio-me uma espécie de terror.Só agora, com os anos,compreendi o que desaparece com semelhantes seres humanos, em primeiro lugar,porque tudo o que é único se torna cada dia mais precioso num mundo como o nosso, irremediavelmente cada vez mais uniforme.
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Pois por onde andaria?Que fora feito dele? p.24-25

…a memória de alfarrabista de Jakob Mendel era, não obstante, na sua especificidade, na sua perfeição única, um fenómeno de não menor importância que a de Napoleão para as fisionomias, a de Mezzofanti para as línguas, a dum Lasker para as aberturas do xadrez, a dum Busoni para a música

- Vou levar-te ao Mendel - prometeu -, sabe tudo e consegue tudo, vai buscar-te o livro mais raro e mais recôndito dos alfarrabistas alemães. É o homem mais capaz de Viena e, sobretudo um original , duma raça em vias de extinção, um sáurio antediluviano dos livros.